quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Poema do Menino Jesus

Um dos mais belos poemas de Fernando Pessoa, na interpretação maravilhosa de Maria Bethânia
Este é quase o poema integral que Fernando Pessoa escreveu no seu livro "O Guardador de Rebanhos", do heterónimo Alberto Caeiro e que aqui deixo na integra:

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão 
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

[Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa), Poema do Menino Jesus]

18 comentários:

  1. ""
    Sem, duvida muito profundo e vindo da alma de alguém com capacidades intelectuais, que fazem ainda hoje, levantar inúmeras questões. Fernando Pessoa, é o poeta português cheio de incógnitas com os seu heterónimos.

    ""

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    1. Sim, Eduardo
      Pessoa usou alguns dos seus heterónimos para assumir algumas posições,mas este poema parece que é mesmo "seu" e é inequívoco na sua beleza e no seu significado.
      Abraço amigo.

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    2. Este é o poema VIII do poema "Guardador de Rebanhos" de Alberto Caeiro... Abraço e Boas Festas.

      (P.S. O texto acima está mal grafado--- os versos não estão «quebrados» correctamente - e há por aí palavras pelo meio a mais... Tenho parte do texto no meu antigo blog: http://andrebenjamim.blogspot.pt/2009/03/8-de-marco.html não tenho aqui comigo o livro de poemas de Alberto Caeiro para deixar link fidedigno para o resto do texto...)

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    3. André
      eu admiro Pessoa, como grande poeta que é, mas admito não ser um "pessoano" puro, daqueles que tudo sabem da vida e obra dele.
      Já tinha lido este poema, não no livro em que está Inserido (O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro), mas sim como um poema avulso e daí pensar que o poema declamado admirávelmente por Bethânea estivessse completo e fizesse mesmo parte da sua obra e não de um dos seus heterónimos.
      Como "manda quem pode, obedece quem deve", alterei na postagem inicial a parte da transcrição do poema que originalmente tinha apenas os versos declamados no vídeo, aliás quase a totalidade do poema.
      E aproveito para pedir desculpa ao João Eduardo por não estar completamente correcta a informação constante no comentário que lhe deixei.
      Abraço amigo.

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  2. Pessoa ortónimo tem outro encanto - eu prefiro, inclusive.

    Lindíssimo poema na voz da talentosa Bethânia.

    um abraço, João.

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    1. Mark
      eu tinha desde já essa opinião, principalmente no que respeita a Álvaro de Campos.
      Mas o que interessa na realidade é no seu todo a obra que Pessoa escreveu e neste caso o facto de Maria Bethânea ter escolhido este seu poema, na sua quase totalidade para homenagear o poeta.
      Abraço amigo.

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    2. Sim, mas Pessoa ortónimo é toda a obra escrita por Pessoa enquanto ele mesmo, não como um dos seus heterónimos. :) Mas, pelo comentário do André, nem se trata do seu ortónimo. Sendo de Caeiro, continua assim mesmo a ser belíssimo.

      Eu é que prefiro Pessoa ortónimo. :)

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    3. Tens razão, Mark
      mas eu, de todos prefiro Álvaro de Campos.
      Abraço amigo.

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  3. Muito bonito e muito carinhoso mesmo para quem não é católico.

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    1. João
      Pessoa chega mesmo nalguns dos seus versos deste poema a "contestar" de certa maneira, o catolicismo na forma como ele nos é ensinado; assim sendo e pelas razões por ti expressas - beleza e carinho - é um poema consensualmente aceite como verdadeiramente notável, independentemente da crença ou fé de quem o lê.
      Abraço amigo.

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  4. Um poema lindo, tão humano e tão quente. Não conhecia esta versão da Bethânia, que adorei.
    Continuação de Boas Festas, amigo João.
    Abraço.

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    1. Arrakis
      a entoaçao de Bethânea é fantástica, perfeita. Vê-se que compreendeu totalmente o que Pessoa pretendia dizer.
      Abraço amigo.

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    2. De facto a entoação da Bethania adiciona ainda uma dose suplementar de emoção a um poema já de si espetacular. Também não sou um Pessoano, mas nos heterónimos, Alberto Caeiro se faz favor.

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    3. Amigo Coelho
      quantas saudades...
      pois estamos na mesma onda, na apreciação da Bethânea; já na preferência pelo heterónimo de Pessoa vou mais para o Álvaro de Campos, onde ele mais se expõe pessoalmente no campo da intimidade, deixando várias pistas...
      Abraço amigo.

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  5. Feliz escolha, João!

    Como já deves ter reparado adoro poesia. Dos 49 poemas que construem 'O Guardador de Rebanhos' conheço bastantes. A Maria Bethânia, para além de ser dona de uma voz excepcional, 'diz' muito bem qualquer poema. Gostei muito!

    Obrigada, João, pelos teus desejos de Boas Festas que retribuo com amizade.
    Na noite de Consoada estive a mandar umas mensagens e fiquei sem bateria no telem, depois com a barafunda habitual acabei por não te ligar. Suponho que tenhas ido para a Covilhã. Antes do fim do ano ainda te ligo.

    Beijinhos.

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    1. Olá Janita
      a obra de Pessoa é tão vasta e tão rica, que encontro nestes dois factos a desculpa possível, para um conhecimento não tão profundo como desejaria dessa mesma obra; no entanto, cada vez me encanta mais a multiplicação de opções que Pessoa conseguiu encontrar para, sempre com um génio inegável, nos transmitir os seus conceitos de vida e os seus sentimentos.
      É um poeta admirável
      Maria Bethânia, já não é a primeira vez que se aventura por estes campos um pouco diferentes da arte que a tornou conhecida e com todo o mérito - o canto. E quando o faz, fá-lo como sempre é seu timbre, bem.

      Sim, estive na Covilhã, mas cada vez mais, sinto o Natal como algo que se circunscreve a um encontro familiar.
      Votos, muito cépticos, devo confessar, de um Novo Ano feliz.
      Pelo menos haja saúde e tu bem precisas dela, pois tens tido umas "macacoas" menos agradáveis, para as quais formulo votos de rápidas melhoras.
      Beijinho.

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  6. obrigada, João. humano, menino e feliz entre nós, uma criança endiabrada, amada, bondosa, como todas as crianças. e também prefiro pensá-lo assim, feliz e sorridente e eterna criança.
    bjs.

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  7. Margarida
    o que mais me atrai neste poema é esse lado humano que nos é transmitido, ver que era um miúdo como os outros e não um "menino- Deus", como sempre nos foi transmitido.
    Beijinho.

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Evita ser anónimo, para poderes ser "alguém"!!!