domingo, 27 de maio de 2012

"ROSAS VERMELHAS"


“Praça da Canção” é para mim, o mais belo livro de poemas de Manuel Alegre. No entanto, logo no início tem um texto, em prosa que é um autêntico poema…
É das mais belas homenagens que se pode prestar a uma Mãe.

Chama-se “ROSAS VERMELHAS”:

"Nasci em Maio, o mês das rosas, diz-se. Talvez por isso eu fiz da rosa a minha flor, um símbolo, uma espécie de bandeira para mim mesmo.
E todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, no dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã (que foi a hora em que eu nasci), a minha mãe abria a porta do meu quarto, acordava-me com um beijo e colocava numa jarra um ramo de rosas vermelhas, sem palavras. Só as suas mãos, compondo as rosas, oficiavam nesse estranho silêncio cheio de ritos e ternura.
Nesse tempo o Sol nascia exactamente no meu quarto. Eu abria a janela. Em frente era o largo, a velha árvore do largo dos ciganos. Quando chegava o mês de Maio, eu abria a janela e ficava bêbado desse cheiro a fogueiras, carroças e ciganos. E respirava o ar de todas as viagens, da minha janela, capital do mundo, debruçado sobre o largo onde começavam todos os caminhos.
E tudo estava certo, nesse tempo, ou, pelo menos, nada tinha o sabor do irremediável. Nem mesmo a morte da minha tia. Por muito tempo ela ficou nos retratos e no jardim, bordando à sombra das magnólias, andando pela casa nos pequenos ruídos do dia-a-dia, até que, pouco a pouco, se foi confundindo com as muitas ausências que vinham sentar-se na cadeira, onde, dantes, minha tia se sentava.
E eu dormia poisado sobre a eternidade, como se tudo estivesse certo para sempre, eu dormia com muitos olhos, muitos gestos vigilantes sobre o meu sono. Por vezes tinha pesadelos, acordava, inquieto, a meio da noite, qualquer coisa parecia querer despedaçar-se e então exclamava:
- Mãe!
E logo essa voz, tão calma, entrava dentro de mim, mandava embora os fantasmas, e era de novo o meu quarto, a doce quentura da minha casa no cimo da ternura.
Não havia polícia nesse tempo. Ninguém roubaria a tranquilidade do meu sono, ninguém viria a meio da noite para me levar, porque bastava eu chamar:
- Mãe!
E logo uma voz, tão calma, mandava embora os fantasmas. E era a paz, nesse tempo, em que todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, o dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã, a minha mãe abria a porta do meu quarto e colocava, religiosamente, um ramo de rosas vermelhas sobre a minha vida, nesse tempo, em que dormir, acordar, nascer, crescer, viver, morrer, eram um rito no rito das estações.
Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Por vezes, a meio da noite, um grito abalava as traves da minha cabeça, direi mesmo da minha vida, e eu acordava suado, dolorido, como se um rato (talvez o medo?) me roesse o estômago. E era inútil chamar. Onde ficara essa voz que dantes vinha repor o sono no seu lugar, repondo a paz dentro de mim? E as manhãs penduradas no mês de Maio, onde acordar era uma festa? Onde ficara a ternura? Onde ficara a minha vida?
Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Dormia – como direi? – acordado sobre cada minuto. Tinha aprendido o irremediável. Alguma coisa, dentro de mim, se despedaçara para sempre (para sempre? Que quer dizer para sempre?). Era inútil chamar. Tinha aprendido, fisicamente, a solidão. Embora na cela do lado, alguém, batendo com os dedos na parede, me dissesse, como se fosse a voz longínqua do meu povo:
- Coragem!
Eu estava, pela primeira vez, fisicamente só, dentro do meu sono povoado por esse grito que estalava por vezes as traves da minha cabeça (onde essa voz que mandava embora os fantasmas?).
E era terrível essa manhã sem manhã, essa realidade branca e gelada, toda feita de paredes, grades, perguntas, gritos. Mesmo que na cela do lado, alguém, batendo com os dedos na parede, me dissesse:

- Bom dia!
era terrível acordar nessa estreita paisagem com sete passos de comprimento por sete de largura, tão hostil, tão dolorosa como as regiões dos pesadelos. Porque acordar era ter a certeza de que a realidade não desmentiria o pesadelo.
Mesmo que os meus dedos batendo na parede transmitissem notícias dum homem que podia responder:
- Bom dia!
de cabeça erguida era terrível acordar no mês de Maio, com a certeza de que no dia 12 a minha mãe não entraria pelo meu quarto, deixando-me na fronte um beijo, e rosas vermelhas sobre os meus vinte e sete anos.
Talvez seja preciso renunciar à felicidade para conquistar a felicidade. Eu estava na cadeia em Maio de 1963. Tinha aprendido a solidão. Tinha aprendido que se pode gritar com todas as nossas forças quando se acorda a meio da noite com um grito na cabeça e um rato (talvez o medo?), roendo-nos o estômago, que ninguém, ninguém virá repor a paz dentro de nós. E, então, é a altura de saber se as traves mestras dum homem resistirão. Pois só a tua voz, amigo, responderá ao teu apelo torturado na noite. E, nessa hora (a mais solitária das horas), se conseguires cerrar os dentes, dar um murro na parede, acender um cigarro, se conseguires vencer esse encontro com a solidão no mais fundo de ti próprio, com que alegria, com que estranha alegria, na manhã seguinte, tu responderás:
- Bom dia!,
mesmo que seja terrível acordar no mês de Maio, nessa estreita paisagem, gelada e branca, com sete passos de comprimento por sete de largura.
É certo que se podem escolher outros caminhos. Mas poderia eu ter escolhido outro caminho? Acaso poderia dormir descansado, onde quer que estivesse, sabendo que algures, na noite, há homens que batem, há homens que gritam?
Os fantasmas tinham entrado no meu sono, invadiram a minha casa no cimo da ternura; os fantasmas eram donos do País. E se eles viessem de repente, a meio da noite, e eu chamasse:
- Mãe!
A voz (tão calma) de minha mãe já nada poderia contra eles. Era um trabalho para mim, uma tarefa para todos aqueles que não podem suportar a sujeição. Eu nunca pude suportar a sujeição. Acaso poderia ter escolhido outro caminho?
Por isso, em Maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu estava no meu posto.
No dia 12 não acordei com o beijo de minha mãe.
Porém, nessa manhã (não posso dizer ao certo porque não tinha relógio, mas talvez – quem sabe? -, às dez e um quarto, que foi a hora em que eu nasci), o carcereiro abriu a porta e entregou-me, já aberta, uma carta de minha mãe. E ao desdobrar as folhas que vinham dentro do sobrescrito violado, a pétala vermelha, duma rosa vermelha, caiu, como uma lágrima de sangue, no chão da minha cela."

32 comentários:

  1. Um texto maravilhoso que joga com sentimentos e vivências muito fortes. Fala de solidão, da ausência do amor maternal e, implicitamente, da crueldade da ditadura. Manuel Alegre no seu melhor.

    Abraço, meu querido João. :3

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  2. Mark
    Manuel Alegre mostra aqui que é um prosador de alto gabarito.
    Este seu livro de poemas é com "O Canto e as Armas" o seu melhor.
    Gostei muito de um pequeno livro dele sobre as memórias de um cão que tinha e morreu - "Cão como nós"...
    Abraço amigo.

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  3. Belíssimo! Também gostei muito do "Cão como nós", João. Uma delícia de escrita...
    Abraço

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  4. Justine
    ainda sobre o "Cão como nós", como pode uma coisa tão banal, pela qual já todos fomos passando e que são as saudades de um animal de que muito gostávamos, se transformar num livro tão maravilhoso?
    Parece que Alegre escreve para o seu desaparecido cão.
    Beijinho.

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  5. MA está na lista dos livros da biblioteca. há algum tempo que lá não regresso.
    bjs.

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  6. não, João, por isso mesmo é que vou lá requisitar :) bjs

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  7. Margarida
    o "Cão como nós" demora 15 minutos a ler, pois é pequeno e não consegues parar...
    Beijinho.

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  8. Não conhecia e adorei. Tão comovente e emocionante a forma como ele aborda a infância e o amor maternal.

    Obrigado pela partilha.

    Abraço.

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  9. Arrakis
    Manuel Alegre escreve admiravelmente, quer em prosa, mas sobretudo em verso.
    Muitos dos seus poemas foram musicados em enormes êxitos de grandes artistas.
    Abraço amigo.

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  10. Adoro poesia.
    De Alegre conheço muita e boa.
    Mesmo a prosa é extraordinária.
    Já ouviste Alegre a dizer a sua própria poesia?
    Adoro!
    Um abraço João.

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  11. Pedro
    já ouvi, sim; e tem um tom de voz excelente. E é tão característico que sou capaz de adivinhar a sua voz mesmo no meio de muitas.
    Abraço amigo.

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  12. Lindíssimo. Emocionei-me.

    Não podias partilhar melhor texto antes que Maio terminasse.

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  13. Mz
    este "poema" em prosa serve para todos os meses, embora se associe o mês de Maio às rosas...
    Beijinho.

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  14. Gostei, achei esse texto muito bom.

    Um abraço

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  15. Sérgio
    é realmente muito bom.
    Abraço amigo.

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  16. Magnífico texto! Precioso testemunho!
    Obrigado João.

    Boa Noite.

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  17. João:
    Não li ainda este livro. Esta amostra que aqui deixas é de uma humanidade e beleza impressionantes. Sente-se em tudo o que temos e em tudo o que somos.
    Há quem diga que a poesia é a arte mais pura. Eu não sei bem se é esta a expressão. O sentido é este. Avaliar Manuel Alegre ou qualquer poeta da sua craveira não é fácil. E não é essa a minha função aqui. Eu só quero dizer-te que " tenho" que ter este livro.
    Obrigada pela sugestão!
    Um grande, grande, abraço.
    P.S. A música é linda! Nota-se que te empenhas, a fundo, em tudo o que fazes. GOSTO!
    Isabel

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  18. João
    Manuel Alegre no seu melhor...
    Abraço amigo.

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  19. Isabel
    lê os três de que falo; consegue ler os três num só dia: "A Praça da Canção", "O Canto e as Armas" e "Cão como nós".
    Vale a pena.
    Beijinho.

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  20. João:
    Cão como nós, já li! Faltam-me os outros dias, embora tenha "O canto e as armas em casa. No entanto, acho que vou ter que voltar a ler o " Cão como nós" porque já não me lembro. Sei que gostei muito.
    Ainda, quanto ao Manuel Alegre, acho que tem algo de incontornável, como muitos outros, felizmente. Não esqueçamos que este sofreu na pele um fascimo exacerbado. Agora, esses caloiros que por aí andam, não têm voto na matéria. Falta-lhes o amadurecimento de quem já viveu, viu e sentiu. Tu entendes-me! Também me estou a lembrar de Zeca Afonso, aquela voz que não têm medo. A cantiga é uma arma. É bem certo.
    Beijinhos
    Isabel

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  21. um texto comovente e muitíssimo bem escrito. há muito tempo que não o lia, e parece que o escolheste com imenso sentido de oportunidade, quando acabo de passar uma fase em que o amor da mãe, mesmo cansada e doente, foi tão importante para mim.

    bem-hajas, João, por tudo aquilo que sabes.

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  22. Isabel
    muitos dos poemas do M.A. e que foram musicados por cantores progressistas - saudoso Adriano - me acompanharam nos momentos de solidão que passei durante a guerra colonial.
    Beijinho.

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  23. Miguel
    essa faceta que agora aqui deixas, do apoio da tua Mãe no momento difícil que atravessaste, foi mais uma coisa muito bonita e que só uma Mãe pode fazer; estando doente, com alguma gravidade, não deixou de te dar o carinho e o apoio que só ela sabe.
    Abraço amigo.

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  24. Fortes emoções ao ler esta mensagem do livro.
    Tudo que acontece em nossas vidas nos marca muito, mas quando tem ligação com as mães...nem tem como descrever.
    Beijinhos

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  25. Patrícia
    é impossível descrever o amor de uma Mãe, e o amor que se tem a uma Mãe.
    Beijinho.

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  26. Bom dia
    Um texto maravilhoso.Valem aqui as palavras primorosamente escolhidas.

    Quando comecei a ler pareceu-me um texto pessoal do João e apressava-me para dar-te os parabéns.

    Os homens podem comunicar-se com gestos ou pequenos toques com os dedos nas paredes da cela, mas nada se parece com o outro acordar nos anos passados à sombra da mãe.

    Resta-me dizer-te obrigado por este passeio ao passado, um presente da mãe no dia do aniversário.

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  27. Olá Luís
    bem gostaria eu de poder escrever um texto parecido como este...
    Mas esse dom, não é para toda a gente, e Manuel Alegre tem-no. Não é fácil um texto reproduzir simultâneamente sentimentos de luta política, vector comum a todo o conteúdo deste livro de poemas, e um sentir tão agudo de amor filial, retratado nesta prosa isolada no meio de tantos e belos poemas.
    Abraço amigo.

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  28. E cá estamos nós tertuliando à volta dos livros...

    Gosto muito de Manuel Alegre, como escritor! Consegui sempre separar o homem do escritor.

    A sua da prosa e poesia (não distingo muito, a não ser pela forma) são de imensa sensibilidade. É que Alegre, até mesmo quando escreve prosa, faz poesia. Daí eu considerar que é um dos melhores na prosa poética... vejo um pouco dessa qualidade|sensibilidade em José Luís Peixoto.

    E este conto (prosa poética) é belíssimo! Comovente!

    Sobre esta temática, não sei se conheces o seu conto 'O Homem do país Azul'?

    Estive para comprar este livro ontem, (a coincidência) mas acabei por me decidir pelo Pessoa 'O Mendigo e outros contos'. Mas continua em aberto...

    Bom final de domingo!

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  29. Fragmentos
    eu do Manuel Alegre só conheço mesmo os três livros referidos, e como dois são de poemas, de prosa só este texto e o referido "Cão como nós".
    Vou ver se descubro em que sua obra está incluído este conto que referes.
    Acabei há três dias de ler "Abraço" do José Luís Peixoto e gostei muito, é óbvio.
    Beijinho.

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  30. O texto está fantástico, tal como o 'Cão como Nós'. No entanto, receio que ultimamente Manuel Alegre tenha vindo a perder algum do encanto, pelo menos para mim.

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  31. Coelho
    não confundas a vida política da sua obra escrita, pois isso não é correcto.
    Claro que a sua obra poética, principalmente estes dois livros(O Canto e as Armas e A Praça da Canção)tem muita influência da ideologia, mas são coisas diferentes.
    E Manuel Alegre até tem sido coerente na sua forma de pensar a política...
    Abraço amigo.

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Evita ser anónimo, para poderes ser "alguém"!!!