domingo, 13 de setembro de 2009

Jorge de Sena

Jorge Cândido de Sena nasceu em 2 de Novembro de 1919 em Lisboa. Terminou em 1936 o seu curso de liceu (média de 13 no 5º e 6º anos, média de 14 no 7º ano), ano em que se inscreveu nos preparatórios para a escola naval . Formou-se em engenharia civil na faculdade de engenharia do Porto (licenciou-se com 13 valores).

Até 1959 foi funcionário da Junta Autónoma de Estradas, data em que se exila no Brasil, onde conclui o doutoramento em letras e rege as cadeiras de teoria da literatura e literatura portuguesa na Universidade de Araquara.

A partir de 1965 passa a viver nos E.U.A. acompanhado da esposa Mécia de Sena, de quem teve 9 filhos, sendo professor catedrático na Universidade de Winsconsin e, posteriormente na Universidade da Califórnia - Sta. Bárbara, onde dirigiu o departamento de literatura portuguesa e espanhola. Recebeu ao longo da sua vida vários prémios, entre eles a Grã-Cruz de Santiago.

Faleceu em 4 de Junho de 1978.

Os seus restos mortais foram trasladados na passada sexta-feira, 11 de Setembro, para o cemitério dos Prazeres, dando finalmente satisfação aos seus desejos de repousar na terra portuguesa, que o não soube conservar em vida e tanto tempo demorou a recebê-lo de novo.






CARTA A MEUS FILHOS
Os Fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-1a.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Lisboa, 25 de Junho de 1959

44 comentários:

  1. Pinguim
    Excelente post sobre avida de um grande homem.
    Obrigada. Lá no meu cantinho tenho aves que sei que tens fobia.
    Desculpa, manhã post sobre outra coisa.
    bjs

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  2. Sou uma devota da poesia, da prosa e d registo ensaístico de Jorge de Sena.
    Agora, quanto às trasladações, é coisa que me faz "espécie", devido à importância que se dá à substância morta e putrefáctea como se d vivo se tratasse. É que um corpo morto não repousa. Está morto.

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  3. Jorge Sena... Tão bom recordar...
    P.S. - Lamento informar a existência de um presente no meu blog...
    Abração grande
    Miguel

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  4. Linda carta... Obrigada pela partilha, (se calhar vou roubar ;))...

    beijinho...

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  5. Falta apenas uma menção ao trabalho de Mécia, que contribuiu para que o espólio de Sena fosse todo sistematizado e publicado quase na íntegra.
    A Guimarães tem o projecto de publicar todo o Sena, pelo menos isso, bem-haja ao ex-banqueiro, mau pintor e ainda pior poeta, sim, aquele que se reformou aos 50 com uma reforma daquelas...

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  6. Estou impressionadíssimo com as fotos de dor... meu deus...

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  7. Pinguim, foi boa ideia este apontamento sobre um grande escritor. Desculpa, mas já agora, sabes esclarecer porque diabo, se era vontade expressa, demorou tanto tempo a repousar entre nós?? Nem na carta do Jorge Rodrigues no blogue valkirio, isso é esclarecido, ou será que até nem foi vontade expressa, e apenas iniciativa do MC? É que custa a acreditar uma coisa destas...
    um beijinho

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  8. Para além do tempo que demorou, e que foi salientado pela Eva, acrescento a falta de referências, na nossa comunicação social, deste facto...
    Será que ainda é "persona non grata"?

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  9. foi tudo muito discreto....discreto de mais como veio lembrar Manuel Alegre.

    linda a música...

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  10. Olá Violeta
    as aves são lindas, não são?
    Este post deve-se muito ao post sobre o mesmo assunto, deixado pelo "Grito Mudo"...
    Beijinho.

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  11. Denise
    eu não estou em desacordo contigo, em relação às trasladações; mas aqui era uma vontade expressa do escritor.
    Beijinho.

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  12. Miguel
    ainda lá não cheguei, mas nunca se lamenta a oferta ou a recepção de um presente; a não ser que seja envenenado, mas disso tenho a certeza de que não se trata.
    Abraço grande.

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  13. Carpe diem
    fazes bem em "roubar" coisas destas; aliás, eu decerto fiz o mesmo, como já referi.
    Beijinho.

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  14. Manuel
    foi sem dúvida uma falha, pois Mécia de Sena, desde a morte do marido tem um trabalho notabilíssimo, como dizes, na organização e publicação da sua obra.
    Quanto ao dito "cujo" eu prefiro chamar os bois pelos cornos e presumo tratar-de de Paulo Teixeira Pinto (só não sabia que era pintor e poeta, maus pelo que contas.
    Abraço grande.

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  15. Ricardo
    eram muitas mais. Houve que fazer uma selecção...
    Abração.

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  16. Eva
    gostei imenso dessa carta do Jorge Rodrigues ao Paulo ("Valquírio"), e que mostra a extraordinária pessoa que é Mécia de Sena.
    A única coisa que sei sobre a trasladação é que era uma vontade expressa de Sena; e parece ter havido demasiados escolhos a vencer, não da família, mas do Estado português, e talvez não só de carácter burocrático...
    Deve haver uma palavra de louvor para o actual ministro da Cultura, pelo seu empenho em resolver o assunto.
    Beijo.

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  17. Sim Tong
    uma referência breve nos telejornais e pouco mais; o caso Freeport e a demissão da Manuela Moura Guedes são "muito mais importantes"...
    Abraço amigo.

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  18. Luís
    como quase sempre, Manuel Alegre, sabe do que fala...
    A música, bela realmente, penso que tem como letra um poema de Lorca, um fuzilado também...(pelo menos foi nessa presunção que a escolhi).
    Abraço grande.

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  19. Excelente post sobre a vida de um revolucionário que tanto amou a sua terra e manifestou todo esse amor através da sua escrita. Tarde de mais para voltar à Pátria. Enfim, chegou! Um homem que sonhou alto mas cujo sonho foi cortado cerce em Portugal.

    Bem-hajas!

    Beijinhos

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  20. Isabel
    infelizmente não é caso único; refiro-me entre outros a Maria Helena Vieira da Silva e António Botto, propositadamente diferentes, mas ambos faleceram no exílio.
    Sei que poderia falar de Saramago, mas não o considero um exilado; e quanto a Maria João Pires, pode ter as suas razões, mas com ela o estado até nem se portou mal, mas enfim.
    Depois há muitos outros casos e nem sequer falo nos políticos que o 25 de Abril resgatou do exílio...
    Beijinho.

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  21. Joao
    É sempre uma honra o meu Grito servir de inspiração aos teus “post’s”.
    Para lá de tudo, o que mais interessa é a divulgação do grande humanista que foi Jorge de Sena.
    Fico muito feliz que o tenhas feito.
    O meu “post” tu viste. Isso basta-me.
    O teu “post”, muitos dos teus fiéis leitores e amigos viram.
    No fim, estamos a cumprir um dever para com Jorge de Sena.
    Divulga-lo como um dos grandes poetas de língua portuguesa.

    GRITOMUDO

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  22. Amigo Grito Mudo
    foi essa divulgação que eu pretendi atingir; claro que tenho que te agradecer a lembrança...
    É curioso que depois da publicação deste meu post, ele já foi publicado e com grande satisfação minha no blog de uma leitora dele: assim se vai alargando a divulgação!
    Abraço amigo.

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  23. Já começa a ser "normal" a indiferença que a comunicação social dá na cobertura de determinados acontecimentos. Este passou despercebido. Do pouco que vi e ouvi sobre a trasladação, muito pouco se falou quem foi J.de Sena, sobre a sua vida e obra.
    (A trasladação foi quase clandestina, disse Manuel Alegre.)
    Abraço.

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  24. Miguel
    isso é verdade, mas estiveram presentes personalidades importantes e a cerimónia até foi bastante digna; o que é estranho é a pouca divulgação nos media; porque razão?????
    Jorge de Sena parece ter sido tão ignorado na vida como agora na morte...
    Abraço amigo.

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  25. Pungente e dura e terna, a carta do Jorge de Sena.
    Comovente, a música que escolheste, e muito bem:))

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  26. Martinha
    não és a única; infelizmente há muita gente que desconhece a sua obra.
    Beijinho.

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  27. Justine
    modéstia à parte, também acho a música muito apropriada... e belíssima, claro.
    Beijinho.

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  28. Pinguim, lindo o teu post, o extensa poesia, tão dolorida - ...como coisa que não é nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente... - fiquei emocionado com esta passagem pois que a vida a tomamos de assalto e longe estamos de a resguardá-la feito um precioso bem. No Brasil, se faz o mesmo com exilados. Pior: exilam-se pessoas vivas no próprio País de forma que se enterram vivos aqueles que já estão mortos para uma parcela da sociedade. Abraço!

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  29. Pinguim, respondendo à tua pergunta: a música que uso nos meus posts é toda de CD's meus, que eu arquivo no Media Player e transformo em mp3. Depois coloco-a num servidor, e daí para o player. Mas por favor não me peças explicações técnicas, porque tive a ajuda preciosa da minha irmã para começar este sistema, e agora é só repetir:))
    Abraços

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  30. Redneck
    talvez no Brasil não se conheça bastante bem a obra de Jorge de Sena, pois nem aqui ele é muito conhecido, a não ser de quem gosta mesmo de poesia; teve apenas um livro de ficção que ficou a ser mais conhecido depois da sua adaptação ao cinema, mas é na poesia e no ensaio que ele mostra essencialmente a sua obra.
    aconselho-te a ler, caso possas, algo dele.
    Abraço grande.

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  31. Justine
    eu estou no mesmo patamar informático que tu, e mesmo que me soubesses explicar, seria demasiado complicado para mim, eheheh...
    De qualquer forma, obrigado.
    Beijinho.

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  32. coitado do senhor, já que veio que tivesse sido para o Panteão! enfim.
    já agora, a "Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya" é dos poemas portugueses que mais admiro, até já o gravei com a voz e imagens de professores, naquele filme que fiz há dois anos, copiei e dei a algumas pessoas que nunca o viram. lembras-te :))


    abraços

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  33. Paulo
    O panteão é para a Amália...
    Sobre o poema, ele é realmente muito bom e dou a mão à palmatória na questão da cópia, mas prometo que vou ver em breve.
    Abraço amigo.

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  34. não te preocupes que não estava a pedir 'explicações'. veio a talho de foice por ser o Sena e logo este poema que seleccionaste. e a Amália é assim tão grande que não caiba lá mais ninguém? :)

    abraços

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  35. Jorge de Sena foi cruelmente injustiçado pelo nosso país. :(
    Oxalá que a partir de agora o país lhe dê o devido valor.
    Gostei do poema: é exuberante.

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  36. Paulinho
    eu sei, tu não pediste, mas eu é que as devo...
    Quanto à Amália, claro que foi ironia; nem sequer são comparáveis...
    Abração.

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  37. Maldonado
    como o Paulo diz este poema é um dos grandes momentos da poesia portuguesa.
    E quanto a injustiças, Sena, foi só um dos vários exemplos.
    Abraço amigo.

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  38. Nenhuma homenagem é despropositada e a minha, apesar de ser (também) tardia, ganha aqui expressão ao lado da tua. Um abraço,

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  39. Luís
    sou da mesma opinião; apenas lamento a pouca cobertura que este evento teve: os nossos jornais e televisões têm assuntos mais "importantes" com que se preocupar...pelo que vejo.
    Abraço grande.

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  40. Olá olá!
    Bela homenagem que aqui fizeste!
    Bonita e sentida!
    Este senhor há muito que o merecia!

    E eu finalmente que consigo por aqui passar depois de tanto tempo...mas não me esqueci!

    Abraço grande

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  41. Rabisco
    eu sei que não te esqueceste, nem não te "cobro" por isso.
    A amizade está acima destas ausências, que por vezes acontecem por motivos vários... Jorge de Sena esperou demais por uma mais que justa reparação da ingratidão que o seu país lhe mostrou.
    Abraço amigo.

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  42. Tinha essa Carta no meu livro de Português do ano passado, e quase todas as aulas abria o livro e lia esse texto. Adoro.

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  43. Olá B'
    obrigado pela tua visita; realmente este poema é um "monumento" da poesia portuguesa contemporânea.
    Beijinho.

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Evita ser anónimo, para poderes ser "alguém"!!!