quarta-feira, 12 de março de 2008

"Os olhos do mundo e a fortuna"




Há já bastante tempo que andava para conhecer o Espaço Karnat, situado junto ao Liceu Camões, numas antigas instalações da antiga Faculdade de Medicina Veterinária (ainda estão lá as bancas de pedra para dissecação dos animais), e que tem apresentado ao longo da sua ainda breve existência, e sob a orientação de Luís Castro, várias iniciativas ligadas ao espectáculo, principalmente na vertente teatral, com destaque para temas alternativos, nomeadamente homossexuais.
Pois fui lá no passado domingo, para assistir a uma representação (penso que a última), de uma peça apresentada pelo “Grupo de teatro 3-sete-3”, e que tem por título “Os olhos do mundo e a fortuna”, da autoria do dramaturgo canadiano John Herbert, e que foi traduzida, adaptada e encenada por José Henrique Neto, fundador do referido grupo e que nesta peça também é intérprete (é o guarda do reformatório).
Fortune and Men’s Eyes (título retirado do Soneto XXIX de Shakespeare) é uma peça crua e amarga sobre a degradação e a brutalidade física e moral num reformatório masculino. O protagonista é SMITTY, que cumpre uma pena de seis meses por um delito menor. A peça foca a sua transformação de um ser humano essencialmente não criminoso e até um pouco naïf num prisioneiro empedernido, que acaba por se tornar ainda mais insensível e cínico do que os companheiros de cela. Os companheiros de cela são três: ROCKY, oportunista, manhoso e gabarolas; QUEENIE, agressivamente “bicha” quando lhe convém, que manobra o sistema iníquo do reformatório em seu proveito; e LEO (“Mona Lisa”), um rapaz meigo que aprendeu a separar corpo e consciência para ir sobrevivendo. A interacção destes personagens cria a dinâmica da peça, uma tensão sombria que resulta na corrupção final de Smitty.
Esta peça foi escrita nos anos 60, sendo portanto anterior ao episódio de Stonewall, em Nova York, em Junho de 1969, quando o movimento de libertação homossexual, como hoje o conhecemos, ainda não existia, e é curiosamente a peça mais publicada de qualquer dramaturgo canadiano, traduzida em 40 línguas e representada em mais de 60 países; teve um impacto social directo e duradoiro, pois, se por um lado apela à tolerância da diversidade em vez da negação pelo ostracismo e à redenção dos tormentos pessoais pelo amor, por outro lado, apela muito claramente a uma reforma do sistema prisional, e deu um contributo forte e pioneiro para acabar com as caracterizações estereotipadas de personagens homossexuais.
A interpretação está a cargo, além do já referido encenador, de um grupo de quatro muito jovens actores: José Redondo, Luís Lobão, Paulo Brito e Tomás Alves.
Numa breve apreciação pessoal, não sendo uma obra-prima, vê-se com agrado, numa encenação muito simples, tendo os intérpretes, aquém falta alguma experiência de palco, dado o seu melhor; no seu todo, é um espectáculo que nos mostra os relacionamentos “manhosos” que se estabelecem nos estabelecimentos de reclusão, e como lá dentro, vitimas de um sistema, os jovens aprendem à sua custa, a tornarem-se eles próprios os “utilizadores” desse próprio sistema, em que os actos homossexuais têm um papel bastante determinante.

21 comentários:

  1. Tenho pena que não venha para cá para "riba", mas paciência.
    As prisões são um "melting pot" do caraças, não são?! Hard, heavy, wild, o que lhe queiram chamar, o mundo das proximidades do mesmo género (masculina ou feminina), acaba por determinar relações dominantes, passividades e grelhas mais ou menos difusas de cumplicidade. Sabes que já estive quase, quase para ir dar aulas a uma prisão (Custóias)? Foi pena não ter aceite o repto, mas na época estava demasiado ocupado e não deu para abarcar esse desafio.

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  2. Amigo João Manuel
    sempre me custou compreender aquele submundo dentro dos muros de uma prisão; há variados graus de criminosos e a convivência entre eles será tudo menos fácil; recordo que quando tinha 16 anos, dentro de um programa de uma associação religiosa a que pertencia, foi-me atribuída uma tarefa de , com um companheiro irmos visitar presos; foi uma experiência que não esquecerei jamais.
    Abraço.

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  3. Olá amigo. Já passei por aqui ontem mas ao ler o teu post anterior percebi que nada poderia dizer perante uma ligação tão forte, tão sincera em todas as suas vertentes, a não ser aquele "passei por aqui e gostei". Aproveitando mais um pouco de tempo livre, tornei a sentar-me no teu cantinho e encontrei mais este texto (por isso admiro o teu fôlego na escrita). Não conheço nada do que falas. Nem a peça, nem o dramaturgo canadiano nem sequer o encenador português, o que me deixa verdadeiramente preocupada com a minha falta de cultura. Mas fica o meu interesse. Pena é que só falasses quando o espectáculo chegou ao fim :))
    Mas fico à espera de mais informações deste tipo como fazes de tempos a tempos.
    Um beijinho grande

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  4. Olá Ana
    não chames a isso falta de cultura, pois o escritor canadiano não será, suponho, um nome grande do panorama da literatura mundial, aoenas canadiana, presumo. Quanto ao encenador penso ser uma das suas primeiras obras, nesta sua companhia muito recente e ainda a dar os primeiros passos; daí, se achas que é falta de cultura, eu estava no teu patamar antes de is ver a peça; aqui temos uma vantagem acrescida ao facto da macrocefalia lisboeta; é que agora temos semanalmente a "Time Out" que nos vai dando dicas sobre coisas que passariam desapercebidas e daí o facto de ter apanhado a peça, mesmo no final da sua curta série de apresentações.
    Beijinhos.

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  5. Curiosamente conheci o Karnart há pouco mais de um ano com o mesmo grupo de amigos do Restaurante japonês. Infelizmente nem sequer soube desta peça senão teria ido ver. Fica para a próxima, tenho que estar mais atento à programação deste espaço.
    Um abraço.

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  6. Amigo Paulo
    o espaço está muito original e por aquilo que tenho sabido, com programações muito interessantes para nós; sem dúvida que a "Time Out" ajuda a descobrir estas "perfomances" que duram poucos dias em cartaz, que não dispõem de grande publicidade e que se perdem muitas vezes.
    É o caso desta peça muito interessante.
    Vamos desde já, estabelecer aqui um "pacto"; caso saibas de algo diferente, diz-me algo e eu farei o mesmo, vê tu que fui só e tu aqui a morar tão perto, terias sido uma boa companhia.
    Abraço.

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  7. ÓÓÓ

    Pena que já tenha saído de cena...

    :(

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  8. Pois,amigo Will, agora parece ser moda: meia dúzia de dias e "toca a andar"...
    Abraço.

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  9. Infelizmente, perco sempre estas coisas saborosas bem pertinho de minha casa... :(

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  10. Ainda estão a tempo!
    Na próxima 6ª e sábado, 14 e 15, podem ainda ver a estreia profissional desses quatro jovens que auguram um futuro brilhante!
    É uma produção autónoma, sem quaisquer subsídios (maior ainda o mérito e a valentia)

    Não percam!

    Maria

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  11. Amigo Luís
    por aquilo que está no comentário a seguir ao teu, ainda tens oportunidade de assistir ao espectáculo.
    Abraço.

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  12. Obrigado Maria, por essa informação que assim poderá levar alguns amigos meus a deslocarem-se ao Karnat nas datas que anunciaste.

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  13. Já pude confirmar a informação da Maria e acho que vou mesmo.
    Então fica combinado, quando souber de algo que valha a pena eu apito.
    Um abraço.

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  14. Ok, Paulo, eu farei o mesmo.
    Fico com vontade de saber depois a tua opinião, pois eles são 4 jovens que merecem ser apoiados; desconhecia que era a sua primeira incursão no teatro.
    Abraço.

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  15. Aqui vai o blog do grupo para que possam saber mais sobre eles.

    http://grupo373.blogspot.com/

    Bom Espectáculo!

    Maria

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  16. Só reparei agora! Uma pequena correcção ao texto inicial:
    O Paulo Brito é assistente de encenação. Os actores são: João Vicente (Queenie); José Neto (guarda); José Redondo (Rocky); Luís Lobão (Mona Lisa) e Tomás Alves(Smitty).

    Maria

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  17. Mais novidades!
    Valeu a pena a aventura do 373!
    A partir de 23 de Abril, mais 15 dias de espectáculo "Os Olhos do Mundo e a Fortuna" no estúdio do Trindade!

    Maria

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  18. Como tenho um encontro de bloguistas no dia 19 de Abril, darei conta dessa novidade.
    Obrigado.

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  19. Cá estou eu de novo!

    Lembram-se do Tomás Alves, nos "Olhos do mundo e a fortuna"? Aí está ele em "Um amor de perdição".

    Maria

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  20. Olá Maria
    já tinha visto uma foto de anúncio ao filme e pareceu-me reconhecer aquela cara...
    Parece que o filme está muito bem, assim como as interpretações; não irei perder.
    Obrigado pela "dica"...
    Um beijinho.

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