quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Grandes nomes do cinema - John Huston

Como ele próprio se apresentou melhor que ninguém no seu livro de memórias publicado em 1980, sete anos antes de falecer – “An open book” – há que aprofundar a vida e obra deste cineasta irreverente que sempre se pôs ao lado dos perdedores ( o tópico mais repetido da sua obra). “O meu sonho recorrente é um em que estou sem cheta e tenho de ir pedir dinheiro ao meu pai”, conta ele; será casualidade pois, que a sua filmografia esteja repleta de homens que, por vocação ou acidente, procuram dinheiro e riqueza? Alguns caçadores de tesouros: Sterling Hayden em “Quando a cidade dorme” (1950) e claro, Humphrey Bogart em “Relíquia Macabra”(1941) e “O tesouro da Serra Madre”(1948). Às vezes, estas odisseias em busca do metal precioso ou do bilhete deslumbrante tingiam-se de aventura, transbordavam risco, emoção, velhacaria, curiosidade “O homem que queria ser rei”(1975), mas muitas vezes eram motivadas por simples problemas de cobiça, delinquência, pobreza e álcool. E quantos deles tinham grande paixão pela bebida! Se Bogart foi o alter ego do realizador na sua juventude, na velhice poderia ser o astuto Michael Caine (“O homem que queria ser rei”), o vaidoso Albert Finney(“Annie”) e um maduro Paul Newman (“O Misterioso Mr. MacKintosh”).
Se até agora só falámos de homens… como é a mulher houstoniana? O realizador casou 5 vezes, e com a sua penúltima mulher, foi pai da actriz e realizadora Anjelica Houston e do argumentista Tony Houston, responsável pela adaptação ao cinema do conto de James Joyce “The dead”, que deu lugar a “Gente de Dublin” (1987), sensível despedida do cinema do mestre.
Houston aliava a paixão pelo casamento com a sua devoção cinematográfica pelas mulheres fortes, capazes de pegar em armas, muito seguras com a sua sexualidade, amadurecidas pelo Sol e pela vida, agrestes e grosseiras, e sempre dispostas a levantar-se quando são derrubadas: falamos de Elizabeth Taylor de “Reflexos num olho dourado”(1967), que aguentava o homossexual reprimido encarnado por Marlon Brando; da Marilyn Monroe de “Os inadaptados”(1961), a sofrer pelos cavalos; da Ava Gardner de “A noite de Iguana”(1964), cuja libertação sexual corria em paralelo com a repressão das outras personagens desta adaptação de T. Williams, e da Kathleen Turner de “A honra dos padrinhos”(1985), a lutar por Jack Nicholson com Anjelica Houston. Mas não esqueçamos as frágeis corajosas como Katharine Hepburn(“A rainha africana”-1951), Deborah Kerr(“O espírito e a carne”-1957) e Audrey Hepburn(“O passado não perdoa”-1960). Houston foi um feminista activo: respeitoso, não deu às mulheres papéis decorativos. Como se faltassem exemplos acrescentemos aqui a Bette Davis e a Olívia de Havilland de “Nascida para o mal”(1942) e a Lauren Baccall de “Key Largo – Paixões em fúria”(1948).



A sua obra abarca desde a idade de ouro do cinema negro doa anos 40, passando pelo esplendor dos actores do Método (só escapou, e por motivos alheios a ambos, James Dean), o western crepuscular “O Juiz Roy Bean”(1972), os filmes dos espiões “A carta do Kremlin” e “O misterioso Mr. MacKintosh” (1970 e 1973), até desembocar numa última fase da sua carreira irregular. Capítulo à parte merecem os filmes malditos, por serem impessoais ou por serem encomendas sem toque. Recordemos “A Bíblia”(1966), onde ele fazia de Noé, “Phobia”(1980), “Fuga para a vitória”(1981), e “Annie”(1982).
Além disso, fez dois biopics notáveis: o impressionista “Moulin Rouge”(1952), sobre a vida de Toulouse-Lautrec, e o grisalho “Freud- além da alma”(1962), com um destroçado Montgomery Clift, e onde contou com um argumentista de peso: Jean Paul Sartre. Adaptou ao cinema Herman Melville “Moby Dick”(1956), Flanery O’Connor “Sangue selvagem”(1979) e Malcom Lowry “Debaixo do vulcão”(1984), além dos já citados Tennessee Williams e James Joyce.



Um capítulo negativo na sua trajectória foram as alterações que sofreram “Sob a bandeira da coragem”(1951), “O bárbaro e a gueixa”(1958) e “O passado não perdoa”(1960). Nem um cineasta tão corajoso, valente e lutador conseguiu aguentar magnatas tão broncos, incultos e ambiciosos. Trabalhou como actor às ordens de três grandes cineastas: Otto Preminger (“O cardeal”- 1963), Orson Welles (no inacabado “The other side of the wind” – 1972) e Roman Polanski (“Chinatown” – 1974). E enfim, também realizou produtos frívolos tão pouco envergonhantes (e até defendidos), como “O tesouro de África”(1953), com argumento de Truman Capote, “As cinco caras do assassino”(1963) e “Casino Royal” (1967).





Fica claro que John Huston foi um intelectual de acção ( e não um rebelde de salão), que se rodeou de outros bom-vivants (e mulherengos) como Chaplin e Hemingway (?), pelo que é difícil encontrar-lhe um herdeiro ou um discípulo. Sobretudo porque as suas aventuras não são épicos de playstation nem os seus aventureiros são super-homens, mas sim párias esfarrapados com pó nos sapatos, os bolsos vazios e a camisa suada, loucos sofridos, imperfeitos, com uma grande história por trás e o orgulho mil vezes moído. Seguramente há um único seguidor: Clint Eastwood, que interpretou o realizador em “Caçador branco, coração negro”(1990), que recriava a rodagem de “A rainha africana”. Se o rude Eastwood tem filmes tão delicados como “As pontes de Madison County”(1995), Houston conseguiu fazer-nos saltar a lágrima com “Entre o amor e a morte”(1969), “Cidade viscosa”(1972) e “Gente de Dublin”(fiquemo-nos com a cena da escada). E se a estátua do Falcão de Malta era feita da matéria com que se fazem os sonhos, a obra de Houston é edificada à base de valor, amor, desafios, murros, mulheres intrépidas, ladrões, soldados, quiméricos inquilinos de uma paisagem aberta e sem limites, personagens indómitos que caçam fortunas, cavalgam sobre baleias, libertam cavalos e convivem com iguanas.

(in “Premiére”)



27 comentários:

  1. Meu Deus, João, o que eu aprendi aqui já hoje de manhã!... Além de cinéfilo e com boas análises, consegues construir todo um retrato nítido de Houston - um dos homens a quem eu devo o fantástico Moby Dick. :)

    (Achei piada à interrogação que acompanha o Hemingway. Não há muita gente que a coloque...)

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  2. ah, adoro estes textos que 'transpiram' cinefília e mania de cinema :)
    apesar de haver dois ou três pontos em que acho que o texto facilita um bocadinho.
    viste o 'Reflections on a golden eye'? acho-o um filme muito estranho, muito sombrio e com algumas ambiguidades. gostava de conhecer a tua opinião acerca dele.
    abraço

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  3. Meu amigo, como grande amante de cinema nem tenho palavras. Excelente homenagem a um dos grandes mestres.
    Já agora passa lá pelo meu cantinho acho que vais gostar do post de hoje.
    Um abraço.

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  4. Só para dizer que estive aqui e gostei muito. Quando a chuva passar hei-de voltar como todos os sentidos... Um abraço... peludo.

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  5. Olá amigo. Não esperava encontrar um texto tão alargado sobre o grande Huston. Também não conheço o "Premiére" (revista?)ao qual referes. O tempo que disponho para ler os trabalhos publicados é tão curto que só consegui ler na diagonal apercebendo-me da quantidade de filmes que nunca vi. Mas um texto deste tipo torna obrigatório o regresso para fazer uma leitura atenta. Por isso voltarei. Um beijinho grande

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  6. João Manuel, meu bom amigo
    John Hustoh sempre foi um dos meus realizadores preferidos, e embora não se possa dizer que tenha um percurso regular, o seu currículo é impressionante e está cheio de filmes muito interessantes; daí, ao ter lido este belíssimo texto num número já bastante antigo da "Premiére", o tivesse compartilhado convosco, embora eu tivesse falado de outros filmes também, nomeadamente no "Moby Dick"; modifiquei pequenas coisas e pus outras - claro que o ponto de interrogação no Hemingway é meu!
    A escolha das fotos também, dando realce a alguns dos seus filmes que mais admiro: "A relíquia macabra", "A Rainha africana", "Reflexos num olho dourado" e "Os inadaptados".
    Abraço.

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  7. Caro Miguel
    Lendo o meu comentário anterior, logo perceberás que te dou inteira razão, embora ache o texto muito bem inserido numa análise vasta e total da obra e do universo houstoniano.
    Sobre o filme que referes, será talvez um dos filmes que tenho uma imensa curiosidade em rever, pois tendo gostado muito mesmo do filme, já o vi há muito tempo, numa altura em que eu próprio ainda vivia em algumas ambiguidades; o livro, que tive oportunidade de ler é magnífico, e o filme, como quase sempre fica aquém dele; a personagem de Marlon Brando é fascinante, penso que à sua medida, e Elizabeth Taylor além de fabulosa continua aqui a sua saga de "companheira" de homossexuais reprimidos, como já o havia feito, em relação a Paul Newman em "Gata em telhado de zinco quente" e de outra forma para descobrir toda a verdade sobre Sebastien no memorável "Bruscamente no Verão passado".
    Fico por aqui, pois quando começo a falar em cinema, perco-me...
    Abraço.

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  8. Meu caro Paulo
    tenho sérias dúvidas sobre quem gostará mais de cinema, se eu, se tu; por isso, ambos gostarmos de Houston é um facto normal.
    Atrasei-me um pouco na vistoria dos blogs, já cheguei à letra H, e por isso já estive no teu outro blog, como deves ter visto, mas espero recuperar hoje...
    Abraço.

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  9. Amigo Sp
    já tinha visto alguns comentários teus em blogs amigos e havia alguma curiosidade, mormente quando enviavas os habituais abraços peludos...eh eh eh (sou suspeito pois gosto de gente peluda, embora já tenha o meu peludinho querido).
    Agora, fui localizar o teu blog, li na diagonal e apressadamente, mas quando chegar ao S, lá estarei para dizer algo; entretanto já te linquei, para não me esquecer.
    Abraço, algo peludo também.

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  10. Querida Ana
    infelizmente a "Premiére", uma magnífica revista mensal sobre cinema, e que tinha origem na sua congénere e muito prestigiada "Premiére" francesa, acabou há uns 3 meses, depois de alguns anos de publicação; tenho a colecção toda o que me satisfaz bastante, e algumas vezes vou lá repescar coisas que penso serem interessantes, como é o caso.
    Beijinhos.

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  11. Sem dúvida um grande senhor da sétima arte e o amigo pinguim um grande senhor do seu blog que me ensinou coisas que eu não sabia...
    Abração grande
    Miguel

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  12. É sempre bom partilhar conhecimentos, meu caro Miguel.
    A blogosfera é isso mesmo, por isso me encanta tanto.
    Abraço.

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  13. Realmente és um homem multifacetado, João.

    Gosto de quase toda a filmografia do John Huston (bom, pastelões como 'A Bíblia', não) e até procuro ver os filmes da Anjelica. Simpatias! E eu, no que se refere a actores, vou muito por simpatias e mais ainda por antipatias. É um disparate rematado mas é assim, há actores que me estragam o prazer do filme.

    Tolices, deixa para lá.

    1 bjo e bons filmes.

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  14. Grande homenagem e lição de cinema que nos deixaste, amigo pinguim! Obrigado! E também gosto muito da filha, a Anjelica. Abraço!

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  15. Olá Mar-maria
    tens razão em chamar pastelão ao filme "A Bíblia", mas não é um filme de Houston, apenas nele interpretou Noé, nada mais.
    Eu também funciono um bocado como tu em relação a actores, por simpatias e antipatias, é curioso.
    A Anjelica Houston é uma belìssima actriz e sem ser uma pessoa bonita sabe bem ser insinuante. O pai de Jonh Huston, também foi um bom actor, tendo mesmo ganho um Oscar de melhor secundário, salvo erro no "Tesouro da Serra Madre": Daniel Houston.
    Beijocas.

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  16. Rectifico o nome do pai de John Houston, é Walter Houston!

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  17. Caro Rato
    eu adoro cinema, infelizmente agora pouco vou ao cinema, um pouco por comodismo, devo confessar; sobre a Anjelica H. lê o que referi no comentário anterior.
    Abraço.

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  18. olá JOÃO
    Excelente crónica, excelente opção!
    ás vezes dá-me vontade de ver os grandes filmes do passado, mesmo a P/B que sejam.Sem efeitos especiaais, tão intensos, tão diferentes.
    Ma sna verdade nem consigo ver os filmes que vão estreando e que vou deixando para trás. Quem sabe quando me reformar, se ainda houver disso daqui a 20 anos.
    Bjocas e obrigada pelas doces palavras.
    Bom fim de semana

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  19. Olá Pinguim

    De facto é uma pena que a Premiere tenha acabado. Todos os meses ficávamos um pouquinho mais ricos com toda a informação cinematográfica que nos ofereciam. Os filmes e realizadores que fui descobrindo à conta deles… hehe!

    Tenho uma vaga ideia de ter lido este texto anteriormente… parece-me um artigo à la João Vieira Mendes lol… relembra-me lá quem é que o escreveu?

    Beijinhos

    P.S. - Gabo-te a paciência para copiar o texto :)

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  20. Não, não, menino Joãozinho, "The Bible: in the Beginning" é do Huston.

    beijinho

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  21. Querida Jasmim
    é realmente pena eu estar na mesma situação que tu, em relação ao visionamento de tantos filmes que deixo passar, nos últimos anos, e que, alguns apenas, repesco em DVD ou na TV, mas sem o grande impacto que é vê-los no grande ecrã; e também eu não me importava, apesar de tudo o que atrás disse, de trocar alguns desses filmes pela visão renovada de outros que muito me disseram, no passado, como disse num comentário aí atrás, dando exemplo o "Reflexos num olho dourado".
    Registei o JOÂO, eh eh eh
    Beijinhos.

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  22. Querida Anita
    comungo do teu pesar pelo fim da publicação da "Premiére" portuguesa, revista séria sobre cinema, que não só nos informava sobre a actualidade, como nos foi contando em artigos variados, muito da história do cinema; e com informação bastante detalhada de tudo o que se passava em Portugal, convém não esquecer; o artigo em questão não é do João Vieira Mendes, mas sim de um autor americano, directamente traduzido para português e cujo nome não tenho agora presente.
    Beijoquitas.

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  23. Sim, sim, menina Mar-maria, tem toda a razão, mas é tão mauzinho, que até parece não ser, e apetece mais recordar a sua interpretação do simpático Noé...
    Beijinhos.

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  24. Ainda bem que regsitaste o João!!!
    Sabes que durante muito tempo dava os parabens a nuam amiga - conehcemo-nos desde o liceu - a 6 de Dezembro.Ligava a outra amiga e perguntava-lhe: a mimi faz anos a 6 d eDezembro, certo' sim, vamos ligar!! Do lado de lá; mas faço anos a 6 de Junho.No ano seguinte a mesma coisa; ao 5º ano consecutivo no dia 5 de Dezembro a Mimi ligou: moças é só para dizer que não faço anos amanhã mas a 6 de Junho.
    bom fim de semana

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  25. Podes chamar-me como quiseres, pois serei sempre eu...
    Bom fim de semana.

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  26. É sempre bom partilhar conhecimentos, meu caro Miguel.

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  27. Dating
    deve haver alguma confusão aqui; tenho o maior apreço em saber que andas a ler e apreciar os meus posts antigos, mas não sei nada de ti, pois quando clico em Dantins vou ter a um site de encontros...
    Por outro lado não me chamo Miguel, mas sim João...
    podes dar-me alguma explicação?
    Abraço.

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